quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A fada da maturidade carrega um porrete

Certo dia, um colega de trabalho chegou até mim para abrir seu coração e sua alma: suspeitava ter sido contaminado pelo temido HIV. Eu, naquele momento ainda, um soroignorante, tentei diminuir sua aflição convencendo-o de que hoje em dia é possível e tranquilo viver com HIV. As drogas mantêm o vírus no corpo indetectável e as pessoas vivem tanto quanto qualquer soronegativo, em resumo, uma blablablá de quem está do lado de fora do inferno. Mas, eu não sabia que a fada da maturidade carrega um porrete. Alguns dias depois dessa conversa, meu colega vem até mim dizendo que seu teste deu negativo, refez outro ainda 30 dias depois e, novamente negativo. Mal sabia eu que dias ainda depois iria ao médico e num pedido de exame aparentemente trivial, que incluía o anti-HIV, a fada me arrebataria com seu porrete... Todas aquelas minhas palavras ao meu colega não estavam dando conta de me consolar e me convencer. Uma porretada certeira na cabeça me deixou atordoado por cerca de três meses. Agora, começo a enxergar o mundo de uma forma completamente diferente. O medo, o desespero, a angústia estão pouco a pouco se transformando numa espécie de maturidade jamais experimentada por mim. Não consigo mais executar o verbo ser da forma como executava antes: não carrego mais aquela alegria despretensiosa de quando era soronegativo; tiraram-me a inércia de viver quase que à deriva e me entregaram compulsoriamente uma responsabilidade de agir, de enxergar, de fazer algo, de ser útil nessa vida mais do que eu imaginava que podia ser antes. Meu corpo inicia uma batalha que nunca havia imaginado capaz de lutar. Shakespeare já disse que não importava em quantos pedaços seu coração se partisse, o mundo não iria parar para você consertá-lo... E lá estava eu, com a alma completamente desfigurada e violentada tendo de vencer a primeira de muitas batalhas... Esse diagnóstico me tirou a euforia idiota, a ilusão de autossuficiência, me fez mais centrado, mais calmo, mais capaz de praticar a alteridade, de enxergar as pessoas. Às vezes, parece que eu reconheço em outras essa mudança, esse golpe dado pela fada da maturidade. Talvez essas pessoas tenham passado por isso também, mas não me sinto confortável para confrontá-las porque certamente eu teria de me confrontar também. Li certa vez que os soropositivos têm a certeza de que a vida um dia acaba de fato, nos é dada uma sentença de morte, embora ela seja a mesma de um soronegativo, no entanto, nós, soropositivos, tivemos de encará-la frente a frente no momento em que vimos a palavra REAGENTE no teste. 
Ressalto ainda que o meu resultado foi me entregue aberto, a pessoa do laboratório imprimiu na hora e me entregou, assim como se me entregasse um daqueles folhetos de propaganda que recebemos no trânsito. Eu mal consegui me manter na posição em que estava, não sabia o que dizer, não sabia o que pensar: o mundo todo havia mudado na minha frente, recebi a porretada da fada ali assim, sem preparo, sem piedade, sem dignidade... Saí do laboratório andando como se eu fosse andar o resto da vida, como se eu pudesse me afastar daquela informação simplesmente por andar. Passei todos os dias dos próximos dois meses como se um programa me lembrasse incessantemente dessa informação, que reverberava no meu cérebro... Inicialmente uma onda de ódio toma conta do corpo, depois uma sensação de fracasso que se transforma em culpa, que vai amenizando até se tornar essa maturidade calma, como se eu fosse possuidor de uma consciência nova que aflorava de um novo olhar das coisas, da vida, das cores...