Certo dia, um colega de
trabalho chegou até mim para abrir seu coração e sua alma: suspeitava ter sido
contaminado pelo temido HIV. Eu, naquele momento ainda, um soroignorante,
tentei diminuir sua aflição convencendo-o de que hoje em dia é possível e
tranquilo viver com HIV. As drogas mantêm o vírus no corpo indetectável e as
pessoas vivem tanto quanto qualquer soronegativo, em resumo, uma blablablá de
quem está do lado de fora do inferno. Mas, eu não sabia que a fada da
maturidade carrega um porrete. Alguns dias depois dessa conversa, meu colega
vem até mim dizendo que seu teste deu negativo, refez outro ainda 30 dias
depois e, novamente negativo. Mal sabia eu que dias ainda depois iria ao médico
e num pedido de exame aparentemente trivial, que incluía o anti-HIV, a fada me
arrebataria com seu porrete... Todas aquelas minhas palavras ao meu colega não
estavam dando conta de me consolar e me convencer. Uma porretada certeira na cabeça
me deixou atordoado por cerca de três meses. Agora, começo a enxergar o mundo
de uma forma completamente diferente. O medo, o desespero, a angústia estão
pouco a pouco se transformando numa espécie de maturidade jamais experimentada
por mim. Não consigo mais executar o verbo ser da forma como executava antes: não
carrego mais aquela alegria despretensiosa de quando era soronegativo;
tiraram-me a inércia de viver quase que à deriva e me entregaram
compulsoriamente uma responsabilidade de agir, de enxergar, de fazer algo, de
ser útil nessa vida mais do que eu imaginava que podia ser antes. Meu corpo
inicia uma batalha que nunca havia imaginado capaz de lutar. Shakespeare já
disse que não importava em quantos pedaços seu coração se partisse, o mundo não
iria parar para você consertá-lo... E lá estava eu, com a alma completamente
desfigurada e violentada tendo de vencer a primeira de muitas batalhas... Esse
diagnóstico me tirou a euforia idiota, a ilusão de autossuficiência, me fez
mais centrado, mais calmo, mais capaz de praticar a alteridade, de enxergar as
pessoas. Às vezes, parece que eu reconheço em outras essa mudança, esse golpe
dado pela fada da maturidade. Talvez essas pessoas tenham passado por isso
também, mas não me sinto confortável para confrontá-las porque certamente eu
teria de me confrontar também. Li certa vez que os soropositivos têm a certeza
de que a vida um dia acaba de fato, nos é dada uma sentença de morte, embora
ela seja a mesma de um soronegativo, no entanto, nós, soropositivos, tivemos de
encará-la frente a frente no momento em que vimos a palavra REAGENTE no teste.
Ressalto
ainda que o meu resultado foi me entregue aberto, a pessoa do laboratório
imprimiu na hora e me entregou, assim como se me entregasse um daqueles
folhetos de propaganda que recebemos no trânsito. Eu mal consegui me manter na
posição em que estava, não sabia o que dizer, não sabia o que pensar: o mundo
todo havia mudado na minha frente, recebi a porretada da fada ali assim, sem
preparo, sem piedade, sem dignidade... Saí do laboratório andando como se eu
fosse andar o resto da vida, como se eu pudesse me afastar daquela informação
simplesmente por andar. Passei todos os dias dos próximos dois meses como se um
programa me lembrasse incessantemente dessa informação, que reverberava no meu
cérebro... Inicialmente uma onda de ódio toma conta do corpo, depois uma sensação
de fracasso que se transforma em culpa, que vai amenizando até se tornar essa
maturidade calma, como se eu fosse possuidor de uma consciência nova que
aflorava de um novo olhar das coisas, da vida, das cores...